A concepção cênica de Moacyr Góes nos anos 90 foi a fonte para este aparato teórico.
POR UMA TEORIA DA VERTIGEM
Nos início dos anos 90 não havia, no Rio de Janeiro, um diretor teatral proeminente como Moacyr Góes. É bem verdade que o momento teatral na cidade era extremamente fértil, com a ascensão de trabalhos ousados como os de Gerald Thomas e sua Cia de Ópera Seca, o experimentalismo conceitual de Márcio Vianna, a chegada de Gabriel Vilela e sua revisitação barroca dentro do cenário teatral pós-moderno, Enrique Diaz e seu espetáculo rítmico-semiológico A Bao a Qu ou os baianos inusitados da Cia Baiana de Patifaria (hilariantemente representados com a sua A Bofetada). Em meio a divagações e aos tão freqüentes questionamentos acerca do teatro e de sua necessidade (sic) de engajamento político, Moacyr viu-se acusado por alguns puristas de encenar uma arte pouco engajada, pouco pragmática. Defendendo-se dessas acusações, o diretor afirmou que estava interessado em um teatro que tivesse "idéias, atores, madeira, pau e lona", intrinsecamente ligado "à poética, e não à cibernética". Contudo, defendia o caráter político de suas peças, segundo ele presente não na discussão “caduca” envolvendo a dualidade conteúdo/forma, mas nos “sinais” presentes em suas montagens[1]. Dentro do excelente texto de defesa de suas propostas, publicado no Segundo Caderno (O Globo), Moacyr fazia uma declaração que venho retomar, neste artigo, para melhor aprofundamento do tema. Disse o diretor:
"Ainda bem que eu tenho a cena, e reconheço somente nela o lugar da relação com as idéias do mundo. (...) Todo artista trabalha com o impulso da insatisfação. Podemos até pensar no que nos leva a essa permanente busca de superação de nós mesmos e de nosso trabalho; talvez a vontade de sermos a imagem e semelhança de Deus; ou de que o mundo fosse diferente e mais felizes os homens; ser ainda, quem sabe, o desejo de atingir a vida através da afirmação da arte. Quando penso nisso, o que me invade é a admiração e o amor por essa raça de seres maravilhosamente estranhos que são os artistas. Indiscutivelmente é muito difícil criar uma obra que cause vertigem, que esclareça e nos confunda, que mude nossas vidas. É atrás dessa que devemos ir. A única obrigação do artista é esta. É este o sim da vida: poder muda-la.”[2]
Como entender, num campo mais dialético, essa questão de “criar uma obra que cause vertigem” proposta por Moacyr Góes? Que proposta imanente de “vertigem” estaria estética e conceitualmente vinculada ao uso dessa palavra?
UMA LEITURA PARTICULAR ACERCA DA VERTIGEM
Devo me abster, efetivamente, de qualquer pretensão no sentido de consolidar na frase do referido diretor as minhas reflexões e inflexões sobre o tema. O propósito único aqui é citar o texto de Moacyr como ponto de partida para desenvolvimento de um raciocínio intrínseco à questão, em total isonomia interpretativa e analítica. É bem verdade que a idéia de "vertigem" já denota, dentre outras leituras, uma situação de subjetividade, visto que cada um tem as suas próprias vertigens, as suas próprias interpretações de um signo (representamen). "Vertigem" seria, buscando-se uma base conceitual, uma perda de equilíbrio ou - pelo menos - uma sensação dessa perda. Digo "uma sensação" porque a vertigem, enquanto perda de equilíbrio, abala as chamadas "estabilidades", ou seja, pontos que possibilitam essa fonte do equilíbrio. Ora, seguindo essa linha de raciocínio, podemos entender que essas estabilidades dizem respeito a diferentes leituras, interpretações e modelos que já temos, construídos em nossa memória emotiva, em nossa relação com o mundo. Quando uma pessoa desmaia ou sente uma tonteira - o que caracteriza fisiologicamente uma situação de vertigem - percebe-se claramente a sua perda de equilíbrio, a sensação de que "as coisas estão rodando", quando elas, na verdade, não estão. O que se quer dizer é que, no momento em que se tem um desses sintomas, não obstante a sensação de que "perdeu-se o chão", ele (o chão), na verdade, está ali, permanece fixo, regido pelas mesmas leis da gravidade que sempre o regeram. Isso não é, portanto, uma situação de perda de estabilidade, mas uma sensação dessa perda, somatizada, criada pela percepção de quem está em processo de vertigem. A definição mais objetiva, portanto, para a vertigem seria a "sensação de perda das estabilidades". Digo "estabilidades", no plural, porque as possibilidades de se perder esse equilíbrio referencial podem ser associadas às mais diferentes leituras do que vem a ser chão ou ponto de equilíbrio - desde a estabilidade emocional, à estabilidade conceitual, artística, moral, religiosa etc. A possibilidade de se perder qualquer uma dessas estabilidades só pode ser, assim entendida, causada por um processo de vertigem.
Vemos, por exemplo, o caso muito peculiar daquela estranha experiência que muitos sentimos quando, já deitados para dormir, temos uma estranha sensação de estarmos "caindo". O que acontece, efetivamente, é uma descarga acima do normal - uma pequena disfunção de nosso organismo, sem maiores conseqüências para o corpo - de noradrenalina, a substância liberada para relaxar os músculos do corpo durante a fase do sono. Durante esse momento de disfunção, o cérebro registra - como que um controle de qualidade interno do organismo humano - que a quantidade emitida foi excessiva, e que o corpo teria caído caso estivéssemos de pé. Imediatamente o inconsciente simula a estranha sensação da queda, somatizando o processo. Ora, se estamos deitados (nem em pé estamos), como pode o corpo sentir a sensação da queda, senão através de uma simulação inconsciente, ou seja, de uma "vertigem" produzida pelo imaginário, somatizada de imediato? Isso prova que - a despeito de estarmos em perfeita estabilidade física e gravitacional, deitados à cama, sem nenhum risco de queda - o organismo, através da vertigem, sente essa perda de estabilidade e se vê caindo, despencando, desabando literalmente. É como a sensação de desmaio - nada mais que uma defesa do organismo, tentando "desligar a máquina" visto que nela não mais pode suportar uma situação incômoda - seja de dor, de sofrimento, de susto etc. A queda no vazio que é o desmaio nada mais é do que uma vertigem provocada pelo próprio cérebro humano para rompimento da estrutura estabelecida entre o sujeito e a situação que o confronta. Diz-se que, nos acidentes em que as vítimas perdem a consciência, o fato ocorre para que elas não se recordem dos momentos mais angustiantes (a batida do carro, a queda de uma altura, por exemplo). Quando retomam a consciência, essas pessoas, normalmente, afirmam lembrar apenas dos momentos anteriores ao baque fatal, tendo uma certa impressão de terem “esquecido” todo o resto. Quando essas lembranças não são efetivamente apagadas, causam o que comumente se denomina “trauma”, que é o estado de pavor gerado pela lembrança detalhada do fato que o cérebro não deveria ter registrado, e sim deletado. O “trauma” seria um outro exemplo de vertigem, visto que ele projeta (simula) no indivíduo a sensação de estar vivenciando outra vez um fato que já é passado. Sendo virtual, e não real, reproduz as mesmas sensações e é capaz de incitar às mesmas reações físicas (motoras) e mentais (emocionais) do momento em que o acidente ocorreu. Percebe-se, por esse fato, que a vertigem é virtual, amparada em dados reais, e que pode ocasionar reações imediatas.
SERES CONCEITUAIS
Ainda nessa questão da vertigem, é preciso que se entenda que tudo aquilo que nos é proposto conceitualmente pertence ao nosso campo de raciocínio, ou seja, à nossa linha de pensamento ou idéia construída. Somos, por essência, seres sociais, inseridos em um contexto de cultura estruturado a partir de nossas relações de convivência, sejam elas familiares, comunitárias, patrióticas etc. Possuímos, na medida em que nos permitimos pertencer a essas instituições sociais, uma série de códigos e elementos que designam a nossa noção de pertencimento a esse meio, através do qual também construímos a nossa noção de identidade. Para cada uma dessas construções de pertencimento e representação, temos conceitos desenhados e estabelecidos. São esses conceitos que definem o nosso grau de "vertigem", ou seja, de constraste com as situações que se contrapõem a essa "estabilidade". Em outras palavras: temos o nosso mundo, a nossa representação, os nossos valores. Quando esses valores são confrontados a ponto de ocorrer uma perda da crença neles, então ocorre a chamada "vertigem". Diferente da catarse, a vertigem não se propõe a projetar e representar o eu, mas a confrontá-lo, a dissipar sua solidez, a bater de frente com suas normas. Quando Zygmunt Baumman renomeia (reconceitua) o pós-modernismo de "modernidade líquida", aludindo a um estado de liquidez, proporcionando escoamento e diluição de todos os valores até então norteadores da sociedade, ele está usando uma excelente base para entendimento da concepção de vertigem proposta neste artigo. É fundamental que nos entendamos como "seres conceituais", ou seja, que produzem, o tempo todo, "conceitos" de mundo, de vida, de pensamento etc. A antropologia contemporânea, amparada no modelo interpretativo desenvolvido sobretudo pelo americano Clifford Geertz, apresenta o homem como um “ser classificatório”. E a diluição desses construtos nada mais é do que a vertigem causada pelo impacto entre a realidade do novo e a estabilidade daquilo que já fora anteriormente construído. Outra teoria a ser incorporada a esse sentido seria a da desconstrução, conforme apregoava Derrida.
Ora, ao assumirmos essa identidade de seres classificatórios, que constroem conceitos para si, estamos admitindo que, na medida em que raciocinamos acerca de todas as coisas que ainda não nos aconteceram efetivamente, tendemos a criar, por antecipação, conceitos a partir de experiências que ainda não se deram. Ou seja, antes mesmo de experimentarmos as coisas, já lhes atribuímos - por raciocínio - algum valor, alguma leitura, alguma inferência. Esse conceito atribuído a priori nos dá o direito de adicionar a essa palavra "conceito" o prefixo referente às coisas que se faz por antecipação. Assim, teremos a adição do prefixo "pré" à palavra "conceito". Construímos, portanto, uma palavra muito conhecida e de péssima reputação entre nós: a palavra pré-conceito (preconceito). É interessante convivermos, então com essa estranha dualidade que é amar e odiar um termo que, a bem da verdade, parece fazer parte de nossa própria existência. O tempo inteiro, em todas as situações, tentamos antever fatos, prever situações, construir bases sólidas para situações que ainda não se confirmaram de fato.
É tarefa praticamente impossível para o artista não lidar com signos pré-concebidos, e mesmo a mais despojada e libertária das artes jamais se libertará absolutamente desse pressuposto de pré-conceituação das coisas, pois toda comunicação pretende atingir um alvo, um objetivo, a ser alcançado por uma mensagem efetiva, cuja possibilidade de leitura e descobrimento já é pretendida (portanto pré-concebida intencionalmente, numa tentativa de antecipar o conceito de quem a decifrará). Pode-se confirmar essa dedução na proposição lógica de Charles Sanders-Peirce de que toda comunicação é dada no nível do interpretante, ou seja, na decodificação da mensagem por parte de quem a lê (o destinatário). A chamada "previsibilidade do código" já é uma possibilidade de pré-conceituação.
Retomando a linha de raciocínio proposta, agora em relação à prática teatral: nem o modelo de encenação naturalista proposto por Stanislavski (alinhado à proposição aristotélica de uma poética teatral voltada para a catarse, provocando emoções fortes na platéia) nem a linha mais reveladora do distanciamento brechtiano ou da quebra do limite procênico com Meyerhold (desencadeando a ação do ator e a reação da platéia numa linha de reflexão e questionamento) podem evitar essa vertente da pré-conceituação. No entanto é possível perceber, em Brecht e Meyerhold, uma busca incessante da desconstrução de todas as bases sólidas e pré-prontas de raciocínio, alçando o ator à condição de provocador, envolvendo a platéia não apenas num jogo de emoção e catarse, mas numa relação mais crítica, participativa, o que efetivamente só pode acontecer a partir do momento em que há um desconforto, visto que toda postura crítica geralmente provém de uma sensação de desestabilização de alguma propriedade da ordem vigente. A insistência de Meyerhold na chamada "muda eloqüência do corpo" pode estar diretamente relacionada a essa proposição de uma reação crítica, visto que a aposta nos elementos comunicativos do corpo do ator requer uma pluralidade de significações bem mais abrangente do que aquela metodicamente proposta pelo texto e por sua execução. A própria transição do período textocentrista para a sistematização do papel do ator na encenação já elucida uma transferência de responsabilidades - assim entendida - do autor para o ator, considerado em Meyerhold o único elemento prioritário e fundamental para a realização do ato teatral.
VERTIGEM E PÓS-MODERNIDADE
Se em Brecht e Meyerhold o peso da razão crítica em oposição ao psicologismo naturalista e à poética aristotélica já se mostrava uma obsessão para o fazer teatral, os desdobramentos dessa linha de raciocínio tornaram-se ainda mais radicais nas obras de Coupeau, Artaud e posteriormente Grotowski. E isso parecia apenas um prenúncio das infinitas possibilidades que o mundo pós-moderno poderia inserir no contexto cênico. Se analisarmos os espectros da arte sob o prisma exposto por Jean Baudrillard em sua obra "A Arte da Desaparição", veremos claramente a associação entre o produto exclusivo da arte e a multiplicidade referencial desse mundo pós-moderno que, devido à fragmentação excessiva e à chamada morte das narrativas, fez da arte produzida neste século um verdadeiro canal de vertigens, levando as pessoas a abandonarem cada vez mais os pressupostos da forma e embarcarem na polissemia e no amálgama de discursos para construírem um significado pertinente.
A arte nunca é o reflexo mecânico das condições positivas ou negativas do mundo, ela é a sua ilusão exacerbada, o espelho hiperbólico.[3]
Ao negar o propósito de equilíbrio da arte e refutar sua postura de representante das condições do mundo, Baudrillard reafirma, no pressuposto da “ilusão” proposta pelo discurso artístico, o potencial (da arte) para oferecer diferentes possibilidades de leitura e classificação da parte dos que a interpretam. Os “seres classificatórios” que somos dispõem de inúmeras possibilidades de leitura e de decodificação frente aos intricados, complexos e plurais sistemas de codificação presentes na arte pós-moderna, o que aumenta a possibilidade semântica do objeto artístico. A arte é vista, assim não como uma força refletora, mas como uma força reflexiva: ao invés de apenas retratar o real, nos moldes propostos por Aristóteles e Platão para a Teoria da Pura Criação, essa arte pós-moderna suscita inúmeras possibilidades de reflexão. É o que o autor chama de “espelho hiperbólico”, pois nele as imagens refletidas são ampliadas, extendidas, reprocessadas para que seus signos adquiram múltiplos significados.
A questão da vertigem está diretamente ligada a uma quebra do que se poderia chamar de “monopólio figurativo”, ou seja, a interpretação condicionada, sugerida pelo artista, de sua obra de arte. Na vertigem não há condicionamento da leitura, mas um direcionamento para que, em função da multiplicidade sígnica presente na obra de arte, o interpretante (aquele que assiste/lê/ouve) possa reportar a situação em que vive à exposição do objeto contemplado (a peça, a música, o livro, o quadro, a instalação). Há que se considerar a impossibilidade de desconexão absoluta entre aquilo que o artista sugere e aquilo que o público vai ler. Ora, o produto artístico, dentro dos princípios de Kant e da sua Teoria da Construção, tem o anímico do artista, e não se pode desnudar o artista das suas vestes de interação com a arte por ele produzida. O enlevo pessoal inerente à produção da arte acaba levando o artista a impregnar alguma mensagem, alguma ideologia, algum propósito e, assim, alguma pretensão à sua obra. O que se quer diferenciar, no entanto, é que a arte que causa vertigem não propõe uma coação, mas uma reflexão, um estado de embate ideológico e filosófico entre aquilo que já está concebido e o somatório de tudo que fora transmitido por aquela mensagem.
É por isso que a arte pós-moderna se caracteriza por ser uma colcha de retalhos, de referências, de retomadas de antigos discursos, de exploração variada de diferentes modelos estéticos e teóricos. No seio de toda a exposição problemática de uma variada gama de informações e referências, vários sentidos são aguçados simultaneamente; o leitor fica atônito com o produto ininterrupto das informações jorradas. Considerando-se a nossa incapacidade cerebral de reter os 100% de toda informação que recebemos, o indivíduo fará uma “seleção” natural e inconsciente dos temas que mais lhe dizem respeito, estabelecendo um conflito pessoal, subjetivo, sem interferências ou manipulações diretas, redundando em uma leitura pessoal. Sob esse prisma, cada pessoa teria a sua própria experiência, as suas próprias conclusões, a sua possibilidade de afeição ou rejeição reflexiva ao objeto de arte assistido. Isso é a vertigem de cada um, a reação individual a uma mensagem coletiva, a uma obra de arte formalmente fechada, mas de conteúdos e proposições sempre em aberto.
Amparados pela tese de que a sociedade pós-moderna é bombardeada por uma gama infindável de informações, podemos afirmar que os indivíduos constituintes dessa sociedade – nós, os chamados “seres classificatórios” – estão propensos a definir paradigmas de classificação e alinhamento para cada uma dessas informações a que estão expostos. Como numa tentativa racional de ordenação e organização das informações recebidas, o sujeito pós-moderno estabelece padrões (alguns subjetivos, outros transmitidos pelo consenso social, familiar ou local, de acordo com o ambiente cultural onde está inserido) e agrupa as diferentes mensagens/leituras apreendidas sob estruturas classificatórias. A maior parte dessas estruturas foi desenvolvida antes da recepção da mensagem: são estruturas prontas, pré-fabricadas, onde serão “armazenadas”, por associação intrínseca, as informações recebidas. Chamemos a essas estruturas de “grupos classificatórios[4]”. O indivíduo possui grupos classificatórios do que considera “certo”, “errado”, “justo”, “injusto”, “bom”, “mal” etc. Os grupos classificatórios estão prontos, definidos, como se pode representar no modelo estrutural abaixo:
Ora, a proposta de uma vertigem é exatamente a desestabilidade de todas essas conceituações e paradigmas. Se temos uma audiência que já vem preparada com um sistema pertinente de categorizações, com campos classificatórios para categorizar a informação recebida através da peça teatral, o objetivo da vertigem é oferecer uma informação que não se alinhe de imediato a nenhum desses campos, promovendo a desconstrução do que seriam os sistemas de previsibilidade. “Quanto menos previsível, ou mais rara, uma mensagem, maior sua informação” – afirma Décio Pignatari[6], destacando a riqueza informativa de uma mensagem inédita. O ineditismo possibilita reflexão porque não cabe no eixo dos campos classificatórios e, além disso, coloca em xeque a sua estrutura. Quando tentamos classificar alguma coisa encaixando-a em um dos campos de classificação que já temos construído (paradigmas) e não conseguimos associar essa coisa a nenhum deles, resta-nos não apenas a necessidade de “inaugurar” um novo campo, mas também a reflexão quanto à aplicação e à validade dos demais campos criados. Assim, a vertigem se dá exatamente no confrontamento entre as ordens de classificação estabelecidas e a abertura para a criação de novas ordens classificatórias.
MEYERHOLD E O CONSTRUTIVISMO DENTRO DA TEORIA DA VERTIGEM
Uma das premissas do construtivismo russo era justamente a aposta em um movimento artístico que insuflasse a quebra das ortodoxias intelectuais, aproximando a arte do campo acessível, valendo-se disso da polissemia sígnica. A premissa era valorizar a obra de arte pelo ângulo da construção e não exatamente da composição. “Lembramos a pergunta clássica de um dos expoentes do movimento, Ossip Brik: “O que um sapateiro fabrica? Sapatos. E um artista? Nada.”
É dentro dessa perspectiva de produtividade através da arte que Meyerhold começa a desenvolver sua prática teatral. Sua utilização do trabalho de pintores era funcional e utilitária – segundo nos informa François Albera em sua obra Eisenstein e o Construtivismo Russo. Dizia o encenador russo:
Se nos voltamos para os seguidores mais recentes de Picasso e de Tatlin é porque sabemos que caminhamos juntos. Construímos e eles também constroem. (...) Que se dêem ao espectador contemporâneo cartazes, materiais tornados sensíveis pelo jogo de superfícies e dos volumes! Em suma, como eles, queremos escapar da caixa cênica[7], em direção a palcos abertos, com superfícies fraturadas, e nossos artistas, felizes em jogar fora seus pincéis, empunham machado, enxada, martelo e começam a talhar, em materiais fornecidos pela própria natureza, as decorações de cena.
A aplicação dos princípios da biomecânica ao trabalho do ator visava a uma desestruturação daquele princípio inspiracional que regia a criação teatral até então. O ator se tornava mais engenheiro, mais consciente da máquina que era seu corpo. A concepção de um ator menos ligado aos ideais psicológicos de Stanislavski e mais atento à instrumentalização do próprio corpo é um dos princípios para a filosofia construtivista. Albera chega a afirmar que “a primazia do fisiológico conduz Meyerhold a valorizar o taylorismo”, alinhando a produção artística à questão da produtividade fabril.
O ator malabarista, cheio de recursos, promovendo uma quebra da quarta parede stanislavskiana e comandando as ações em cena, é uma revolução que leva os expectadores a uma reflexão nova, diferente, até mesmo incômoda nas platéias russas. Pode-se dizer que esse é o momento crucial da vertigem, ou um de seus primeiros movimentos na história do teatro. Visto que todos os movimentos vanguardistas buscavam a quebra dos paradigmas e o estabelecimento de uma nova ordem, o construtivismo – como força resultante de um movimento vanguardista – também propõe essa articulação. Mas na era pós-moderna, quando teoricamente se diz que todas as vanguardas acabaram e que a questão temporal é substituída pela questão espacial (o virtual ocupa o lugar do real, e, assim, não há cronologia necessária, porque passado e futuro podem perfeitamente se virtualizar no espaço presente), a vertigem torna-se muito mais efetiva, eficiente. Embora o mundo atual tenha gerado “filhos” que já não se chocam nem se assustam com qualquer coisa, a mesma força que atenua o choque também potencializa a vertigem. Se esta sociedade pós-moderna já acostumou as pessoas à ordem do impacto e do choque, por outro lado não cessa de gerar fluxos ininterruptos de informação, novos códigos, sistemas de comunicação e difusão de elementos culturais, sociais e artísticos. E esse é o material que mais acentua as possibilidades de confronto intelectual que levam à ocasião da vertigem.
[1] Os termos entre aspas foram utilizados pelo próprio Moacyr Góes em texto publicado no Segundo Caderno do O Globo no ano de 1993, artigo intitulado “As polêmicas dissimuladas não levam a nada”. Lamentavelmente, por ter-se perdido o recorte original, sobrou apenas uma cópia do texto, na qual não consta a data exata de publicação.
[3] A arte da desaparição, página 84.
[4] A terminologia sugerida tem por objetivo sintetizar os conceitos para referencias posteriores no decorrer deste trabalho.
[5] Cibernética e Sociedade, página 21.
[6] Informação, Linguagem, Comunicação – página 48
[7] A chamada box stage a que se referia Stanislavsky, princípio da quarta parede, através do qual o ator representava como se estivesse dentro de uma caixa (cênica).
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